Fotografia: Câmara Municipal de Ílhavo
Era jovem, nem 20 anos tinha quando, em 1957 embarcou pela primeira vez no “Elisabeth”, o navio-motor bacalhoeiro que partia de Ílhavo rumo aos bancos gelados da Terra Nova e da Gronelândia para a pesca do bacalhau.
José Miguel Castro, conhecido como Zé Miguel, nasceu na Costa Nova há 81 anos e mantém bem vivas as memórias de um dos mais emblemáticos programas de autarcia económica implementados pelo Estado Novo: a Campanha do Bacalhau.
“Naquele tempo, quem fosse para o bacalhau não ia para Angola, havia lá a guerra”, explica-nos.
Na verdade, ainda antes do Estado Novo, em 1927, foi promulgada a primeira legislação pelos Governos da Ditadura Militar que isentava de serviço militar os pescadores que fizessem seis campanhas consecutivas na Terra Nova. A forte vaga de emigração dos anos 60, a natureza obsoleta da pesca à linha, no período coincidente com as guerras coloniais em África, fizeram com que surgissem sérios problemas de recrutamento. Era difícil formar as tripulações por falta de mão-de-obra. O decreto de 1927 voltou a ser importante e “proporcionou a muitos homens um dilema humano que hoje nos impressiona: embarcar num bacalhoeiro e escapar à guerra de África ou preferir a “guerra do bacalhau” no Atlântico Norte?”, como explica Álvaro Garrido, professor da Universidade de Coimbra e consultor do Museu Marítimo de Ílhavo.
Foi no cais dos pescadores da Costa Nova que encontrámos Zé Miguel. Estava sentado junto às casas de madeira onde os pescadores guardam o material da pesca. O dia estava solarengo e os homens já tinham regressado do mar. Com ele trazia uma medalha que colocou orgulhosamente ao peito. Tinha o símbolo do bacalhau e foi-lhe oferecida numa homenagem feita no Museu Marítimo de Ílhavo aos atos de bravura e sacrifício das gentes que viveram parte das suas vidas no mar. “Fiz 15 viagens ao bacalhau”, diz-nos. “A bordo iam cerca de 65 homens”.
As viagens ao bacalhau eram campanhas sazonais, cerca de seis meses, entre abril a outubro. “Dormíamos dois a dois e a comida era sempre a mesma coisa: chá ou leite feito de pó, grão, feijão e batatas. Foi assim a vida”, desabafa. Era no rancho, à proa do navio, onde se comia e dormia. Os pescadores dormiam vestidos, dois a dois normalmente por relações de parentesco e o fogão estava sempre acesso para aquecer os homens. Havia falta de água potável, “tínhamos uma caneca de água por dia, para lavar a cara, as mãos e para beber”.
Os problemas de saúde eram frequentes e os homens trabalhavam “até aos limites quando havia peixe e o tempo o permitia, era um esforço sobrehumano”, afirma Álvaro Garrido. Atualmente professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e consultor do Museu Marítimo de Ílhavo, Álvaro Garrido tem-se dedicado ao estudo do mar e das pescas. Numa conversa com o docente percebemos a enorme importância social da pesca do bacalhau. Só no período entre 1935 e 1974 foram mais de vinte mil homens como tripulantes da frota bacalhoeira.
Esse trabalho permitia-lhes “a possibilidade de um rendimento fixo e regular que as outras pescas não davam”, explica-nos. Para a economia e vida social das comunidades marítimas portuguesas, “foi um modo de vida importante que reflete bem o atraso do país, a miséria social que grassava nas comunidades dos pescadores”.
Zé Miguel ainda se lembra do seu primeiro ordenado, “foi 20 escudos por um quintal de bacalhau” ou seja, 12 mil quilos de bacalhau.
“Quem ultrapassasse os 100 quintais recebia mais 25 tostões. Era uma esmola na mão”, diz-nos ao mesmo tempo que dá uma pequena gargalhada.
É fácil sentir empatia pelas estórias destas gentes que faziam campanhas de seis longos meses em condições extremamente duras. Em mar aberto, os pescadores afastavam-se duas a três milhas do navio-mãe, tanto que “às vezes nem o víamos, mesmo quando não existia nevoeiro”. O navio desviava-se indo atrás dos homens que pescavam mais, “graças a Deus nunca me perdi, mas muitos ficaram por lá”, desabafa. A bordo de dóris, pequenos barcos de fundo chato que levavam apenas um homem, o trabalho era penoso, talvez por isso se tenha tornado numa lenda internacional. “Aquilo era duro! Às quatro da manhã era quando o capitão mandava dar os louvados e só às seis da tarde nos chamavam de volta”.
No seu bote, Zé Miguel levava um cesto com linhas e anzóis e “uma alcofa com o ‘bicho’ cortado aos bocadinhos”, que podia ser sardinha, cavala ou lula. Para se orientar uma roda dos ventos e para comer uma merenda de pão e peixe frito. Um trabalho solitário onde as horas em alto mar deixavam espaço para os desvaneios. “Pensava na morte e na família, mas por vezes era melhor nem pensar porque dava cabo de nós”.
Zé Miguel recorda com pesar os homens que não conseguiram regressar ao navio e exclama de braços abertos quando questionado se tinha receio do nevoeiro, “Medo? Ai medo… então a gente a ver a morte à frente dos olhos…” O pescador que entrou para o “Elisabeth” pela mão do primo relembra um dos momentos de maior aflição.
“Eu ia morrendo afogado. Foi na Gronelândia. Passou uma tromba d’ água que me partiu o dóri, eu levei uma pancada e fiquei sem sentidos. Cai ao mar e quem me salvou foi um rapaz, era de São Jacinto. Botou-me a mão aos cabelos e salvou-me”.
O retorno dos dóris ao navio acontecia por volta das seis da tarde e a bordo ainda os esperava a segunda fase da produção que só terminava com o peixe escalado e salgado no porão.
“Às vezes dormia só duas ou três horas por noite quando fazia a vigia. Aquilo era uma vida triste mas naquele tempo não havia melhor”, admite. Álvaro Garrido relata ainda a forma como aos dias de hoje nos parece irracional ou exagerada a opção de embarcar num navio bacalhoeiro durante dezenas de anos consecutivos, mas os tempos eram outros, e “na verdade muitos homens que por lá andaram ainda hoje afirmam que, se pudessem, repetiam a experiência.
Eles eram pescadores e habituavam-se às viagens e às privações da vida a bordo dos lugres porque tinham a motivação da soldada (fixa e complementar), o aforro, a família, os filhos. Além disso, não conheciam outra vida, muitos eram filhos e netos de bacalhoeiros”. Filho de pescador da Costa Nova, Zé Miguel diz que da pesca do bacalhau tem “umas saudades tristonhas. Basta que é mar, há ir e não voltar.” Saiu da faina maior quando conseguiu comprar um barco, e diz com orgulho que na zona de Aveiro e Ílhavo todos o conhecem, “fui daqui o melhor pescador de robalo, linguado, chocos, tudo!”
O contexto histórico da pesca do bacalhau
A pesca do bacalhau, um episódio da história épico ou dramático? Para Álvaro Garrido “ambas as coisas”, um “drama épico” como o próprio descreve porque “correspondeu a uma atividade humana de extrema dureza e coragem”.
Segundo Garrido, a frota portuguesa foi a última frota migratória transatlântica que fez uso da vela para grandes navegações e “desse detalhe, bem como dos pescadores de dóri, se valeram jornalistas, escritores e antropólogos para criar uma lenda internacional que a propaganda do Estado Novo soube promover além-fronteiras”.
Considerado um dos mais emblemáticos programas de austeridade económica implementados pelo Estado Novo, a Campanha do Bacalhau foi “um êxito”. Além de ter subsistido de 1934 a 1967, até à liberalização do comércio de bacalhau e do regime de importações, “o fomento da produção nacional e a solução política do problema do abastecimento foi, em boa medida, concretizado” esclarece. Contudo, o mesmo não se pode dizer dos impactos sociais e da eficiência económica, uma vez que “o sistema viria a cair como um castelo de cartas quando o Estado deixou de poder financiar os preços e os fatores de produção em geral (armadores à cabeça) e quando o Direito Marítimo Internacional mudou”.
Como refere Álvaro Garrido, o Estado Novo ergueu o sistema com um propósito delineado: garantir a estabilidade do abastecimento e o lucro protegido dos armadores. Para isso, foram criados o Grémio dos Importadores Armazenistas de Mercearia e o Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. Instituições que dependiam do Governo e de filiação obrigatória. O primeiro era “um cartel” que “agrupava os comerciantes importadores e regulava o negócio de importações do bacalhau”, ao condicionar as importações através de quotas.
Tudo isto era feito em articulação com a Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau – o organismo de coordenação vertical do setor, como justifica Garrido. Por seu lado, o Grémio dos Armadores agrupava todos os armadores de navios bacalhoeiros, “cerca de trinta, na sua maioria de Ílhavo e Aveiro, e assegurava-lhes o escoamento da produção de bacalhau a preços tabelados e margens de lucro garantidas”.
Também os contratos coletivos de trabalho com os pescadores e restante tripulação que compunha a frota passava pelo Grémio. O professor da Universidade de Coimbra que se dedica há muito à história da faina maior, não tem dúvidas em afirmar que “tudo era política no sistema de governo da pesca do bacalhau do Estado Novo”.
Aliás, esta ideia foi reforçada após elaborar uma biografia sobre o oficial da Armada Henrique Tenreiro – “o vértice de todo esse sistema de poder, o poderoso delegado do Governo junto dos organismos das pescas, de 1936 a 1974”. Totalmente fundamentais e imprescindíveis para a subsistência da campanha, os pescadores eram também “o elo mais fraco de toda aquela cadeia”, defende Garrido.
Embora fossem representados pela propaganda como nautas, navegantes, heróis do mar, eram em boa verdade, “figuras humanas condenadas a um trabalho muito difícil cuja dignidade humana e social era uma falácia”, justifica.
Salazar nunca permitiu a criação de sindicatos para os pescadores. Foi Pedro Teotónio Pereira, em 1934 que consentiu a criação experimental de três sindicatos corporativos, um dos quais em Aveiro, que trouxeram “uma forte agitação anarquista e tentativas de infiltração de elementos comunistas nos sindicatos nacionais”.
A greve dos bacalhoeiros em 1937 e a forma repressiva com que o Estado Novo reagiu ditou os anos seguintes da campanha. Isto porque, o Governo criou nesse mesmo ano a lei das Casas dos Pescadores, “acompanhada de um esquema de severo controlo do recrutamento que perdurou até 1974 “e que foi decisivo para a estabilidade da mão-de-obra nos navios de pesca à linha e arrastões”.
Álvaro Garrido reforça, “a Campanha do Bacalhau assentava num sistema intensivo de exploração do trabalho, o fator recrutamento e o dispositivo da mobilização obrigatória, foram fundamentais”. As Casas dos Pescadores, por seu turno, “acabaram por desenvolver uma obra de assistência social muito visível”, esclarece.
Henrique Tenreiro tornou-se presidente da Junta Central das Casas dos Pescadores e a seu mandado foram contruídos bairros de pescadores, postos médicos, creches, lactários e lares de idosos para pescadores, “uma aparatosa obra social cuja propaganda chegou a diversos países estrangeiros”, adianta Garrido. Álvaro Garrido guarda na sua memória diversas histórias de pescadores resgatados por navios da guarda costeira norte-americana, por exemplo. “Houve casos dramáticos, ainda que a mortalidade nos navios de pesca à linha fosse menor do que arrastões. Está por contar e investigar a história dos desertores
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