O barco moliceiro tal como os Ovos Moles são os maiores ícones de Aveiro. Saberão os aveirenses falar sobre esta embarcação portuguesa mundialmente reconhecida? Com sentença de morte ditada, o moliceiro tem resistido com esforço ao longo dos tempos e o futuro parece querer-lhe sorrir. Segue-se uma breve história, análise ao estado atual e como se perspetiva o futuro próximo deste ex-líbris da região.
Passado
A História do Moliceiro
O moliceiro era um barco de trabalho utilizado para a apanha do moliço, uma alga aquática usada para adubar os terrenos agrícolas da região de Aveiro. O moliceiro navegava predominantemente entre Ovar e Mira. Foi na Murtosa que estas embarcações nasceram. A Murtosa enquanto território é considerado o coração da ria e a pátria do moliceiro. A sua construção é feita por dois homens e demora em média 25 dias a ficarem concluídas. A madeira utilizada é o pinheiro manso e bravo, espécie que abunda na região. O moliceiro mede 15 metros de comprimento e 2,5 metros de largura. A borda baixa agiliza a apanha do moliço, mas a parte mais característica, que diferencia as demais embarcações portuguesas, são a proa e a ré com as suas pitorescas pinturas. Os quatro painéis são pintados com diversas temáticas socioculturais e têm sempre um texto a acompanhar a imagem. Inicialmente funcionavam como uma espécie de jornal da ria, um espaço para expressar a opinião e os acontecimentos entre as pessoas de Ovar, Murtosa, São Jacinto, Ílhavo e Mira. É comum as pinturas abordarem de forma satírica ou cómica conteúdos históricos, religiosos, políticos e lúdicos. As pinturas eram feitas pelo construtor naval mas por questões de poupança, passaram a ser os proprietários a fazê-las. Atualmente o trabalho é encomendado a artistas da região que primam pela preservação desta tradição. Curiosamente esses artistas ficam sempre em anonimato.
Há poucas décadas atrás, o moliceiro correu o risco de desaparecer devido à extinção do uso do moliço. Senos da Fonseca, autor da obra “Embarcações que tiveram berço na laguna – arquitetura naval lagunar”, foi à capitania consultar registos que deram a perceber a dimensão da atividade económica no passado e a extinção iminente nos anos 90 do século XX: “Em 1889 estavam registados na Capitania do Porto de Aveiro 1749 moliceiros. Em 1975 eram 30. Em 1998 apenas dois”. A preservação do moliceiro só aconteceu porque entretanto uma nova realidade económica surgiu e fez do moliceiro um novo símbolo cultural da ria. Esta reinvenção promovida pela atividade turística em Aveiro evitou que o moliceiro se tornasse relíquia de museu. Especula-se que apenas algumas embarcações resistiriam devido à teimosia e paixão de aficionados com meios para as sustentar.
Presente
Traça original vs Nova realidade
Atualmente o moliceiro é o principal motor da promoção da região da ria e da cidade de Aveiro. De acordo com dados recolhidos em 2017, numa reportagem do Jornal de Notícias sobre o turismo e o moliceiro em Aveiro, existem 27 embarcações (moliceiros e alguns mercantéis) que passeiam pelos canais urbanos da ria com turistas espanhóis, franceses, brasileiros, holandeses, asiáticos, italianos e de outras nacionalidades. Na reportagem, o presidente da Câmara Municipal de Aveiro, Ribau Esteves, estima que um milhão de pessoas cruzaram os canais da ria de Aveiro, ao mesmo tempo que descobriram novos pontos atrativos da cidade, tais como os edifícios de Arte Nova, as salinas e a gastronomia, gerando um volume de negócio de oito milhões de euros. A atividade dos moliceiros criou cerca de 150 postos de trabalho diretos e indiretamente fez crescer a restauração, a hotelaria, o comércio e o artesanato. O reverso da medalha foi que os canais urbanos obrigaram a introduzir mudanças no moliceiro original: os mastros foram anulados, cortaram-se as proas e aplicaram-se dobradiças para que pudessem passar nas pontes. O seu tamanho aumentou e em vez de levarem 12 pessoas passaram para 20 a 22 passageiros. As condições de comodidade também melhoraram, foram criados bancos e colocados apetrechos para assegurar a segurança dos turistas. Barcos originais, a navegarem à vela em “ria aberta” e a participar nas regatas existentes, restam apenas dez: Ferreira Nunes, O sonho, Marco Silva, O Arrendeiro, Dos Netos, São Salvador, Inovador, Zé Rito, O Amador e C.M. da Murtosa.
Pertencem a pescadores, construtores de embarcações e a familiares de moliceiros. Nenhum deles faz do passeio atividade a tempo inteiro essencialmente por estarem longe do centro urbano. A construção naval tradicional está a perder-se em todos os concelhos da região lagunar. Os construtores mais ativos que restam e que ainda se dedicam à atividade são António Esteves e Felizberto em Pardilhó, e na Torreira José Rito e Marco Silva. Recentemente foi notícia de interesse nacional o “bota-abaixo” de dois novos moliceiros intitulados de “O Presidente” e “Conquistador”. Construídos de acordo com as tradições navais, o primeiro pela mão de António Esteves e o segundo por Marco Silva. A pintura dos painéis dos dois elementos mais recentes da família das embarcações tradicionais ficou a cargo do artista plástico murtoseiro José Oliveira (também conhecido como Zé Manel). O autor da quase totalidade dos painéis dos moliceiros existentes na ria de Aveiro, comemora este ano 30 anos de carreira. O Presidente e o Conquistador simbolizam o futuro e a vontade de manter viva a tradição dos moliceiros e representa mais um passo na preservação do barco considerado por muitos como “a mais bela embarcação do mundo”. Desta forma existem atualmente 12 embarcações tradicionais com capacidade de navegarem à vela em “ria aberta”, sendo que apenas três estão adaptadas ao turismo. De sublinhar que se este número existe, deve-se em grande parte ao senhor Diamantino Dias, considerado o “Pai das regatas”, que todos os anos organiza três regatas em ria aberta. E que desta forma mantém acesa a paixão de quem se dedica profissionalmente aos moliceiros tradicionais. Mesmo neste cenário que apresenta provas de um futuro risonho, existe o receio de que o “saber fazer ancestral“ dos atuais mestres se perca de vez por não existirem seguidores. Nesse intuito de preservar esse saber a Câmara da Murtosa criou um Estaleiro Museu da Praia do Monte Branco, na Torreira. Este espaço para além de preservar as artes tradicionais facilita o conhecimento aos visitantes, divulgando a cultura e a história das gentes ribeirinhas. É ainda utilizado para a construção de embarcações tradicionais.
Futuro
Novas tecnologias e classificar o moliceiro como património nacional
Perspetiva-se que num futuro próximo a navegação dos barcos nos canais seja com mobilidade elétrica. Esta vontade faz parte do projeto Aveiro STEAM City, transformando-a na primeira cidade 5G do país e num laboratório vivo de inovação. O moliceiro é um barco único no mundo pela sua peculiar forma e decoração, bem como pela sua construção e importância histórica e socioeconómica. Nesse sentido, há algum tempo que existem manifestações a pedir a coordenação de entidades para avançarem com o pedido de classificação dos moliceiros como património nacional e Património Mundial da UNESCO. Alguns puristas defendem a existência de um barco moliceiro que respeite a forma tradicional, preparado para navegar à vela exposto no canal central da cidade de Aveiro. Assim os turistas e as novas gerações de aveirenses teriam a oportunidade de conhecer o verdadeiro moliceiro. Verónica Fonseca, responsável pela empresa Terra D’Água e proprietária do moliceiro “O Presidente” acredita no turismo como o motor de revitalização das embarcações tradicionais da ria de Aveiro, em especial o moliceiro, e que desta forma se entre num novo ciclo de crescimento da atividade que envolve estas embarcações.
Ricardo Cardoso, também responsável pela Terra D’água defende que existem dois mercados diferentes. O do moliceiro (e mercantéis) nos canais da cidade de Aveiro e os moliceiros em “ria aberta”. O primeiro é “uma amostra limitada do que é o moliceiro” e o segundo é “turismo da natureza, onde o turista tem a oportunidade de viajar numa embarcação tradicional, conhecer o contexto histórico e descobrir a verdadeira ria de Aveiro”. Ambos são válidos, devem coexistir em conjunto, pois são o futuro
da continuidade do moliceiro. Para Ricardo Cardoso é necessário que se tomem medidas para a “conservação da ria” para que toda a sua extensão seja navegável e que haja a “valorização do território”, em que os municípios promovam ao máximo a ria e que criem dinâmicas para valorizar o moliceiro. “Se estes vetores funcionarem” aumentará automaticamente o número de moliceiros, a atividade de construção naval, o número dos postos de trabalho e o interesse de pessoas em trabalharem na área (empresários e jovens à procura de emprego).
Ricardo Cardoso remata e conclui “onde existe dinheiro, existe vida” e “desta forma a passagem de valores e saberes irá perpetuar no futuro”.
Foto capa: Diogo Moreira
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