Recorda que não gostava quando lhe perguntavam em jovem o que queria ser quando fosse grande. Ricardo Costa ingressou na cozinha sem plano de carreira traçado, um pouco ao sabor do vento. Agora, aos 40 anos, é um dos nomes maiores da gastronomia nacional. Chefe executivo do The Yeatman, detentor de duas estrelas Michelin, é apaixonado por aquilo que faz. Diz que o caráter e o querer são fundamentais, mas também há momentos chave na carreira de cada um que ditam o sucesso.
Texto: Joana Rato
Fotografia: Miguel Bastos
Das memórias de criança, Ricardo Costa guarda a simplicidade dos cozinhados da mãe, uma herança de sabores que tenta transmitir aos seus dois filhos. O chef de cozinha leva o berço e a gastronomia a peito. E a região onde nasceu acaba por influenciar as suas criações. Aveirense de gema, criado em Aradas, mudou-se para Coimbra aos 17 anos para frequentar a Escola de Hotelaria e Turismo. Começa por trabalhar em hotéis e restaurantes nacionais. Depois seguiu para Espanha e Inglaterra. Em Londres, foi chefe executivo do restaurante “The Portal” e no regresso a Portugal assume a liderança no Restaurante Largo do Paço, no hotel Casa da Calçada, em Amarante. É na cidade nortenha que conquista a sua primeira estrela Michelin. Em 2010, ruma ao The Yeatman, em Gaia, onde obtém uma estrela, apenas um ano após a abertura do hotel. Há três anos, somou a segunda estrela elevando o hotel ao restrito clube de elite duas estrelas Michelin. Quando nos encontrámos no final de janeiro no Museu de Ílhavo, o Aquário dos Bacalhaus serviu de cenário para a nossa conversa, um local que eterniza a arte da pesca do bacalhau e que homenageia as gentes da terra que se dedicaram à faina maior. Ao chef, que também é confrade de honra da Confraria do Bacalhau, propusemos-lhe um desafio, sugerir um prato com aquele que durante tempos foi chamado “o pão dos mares”.
“Quando aprendia uma coisa, isso ‘abria-me’ a porta para mais dez ou vinte. E assim sucessivamente. Quanto mais ‘puxava’ mais informação chegava.”
Lembra-se do sabor da casa da sua avó?
Lembro-me, claro que sim. Cada vez mais tento puxar o sabor dessas memórias. Mas acho que a minha mãe cozinha melhor do que as minhas avós. A minha mãe cozinha muito bem.
A sua mãe teve alguma influência na escolha de ser cozinheiro?
Ela nunca soube que eu poderia seguir esta profissão, mas se calhar deu-me o palato e o gosto, que não sei se nasceu comigo ou se foi herdado pela comida que ela fazia.
Podemos dizer que o filho superou a mãe?
De longe (risos).
Mas quando vem cá (Aveiro), há alguma coisa que lhe pede para ela fazer?
Infelizmente só venho ao fim de semana, mas se eu aparecer de surpresa, sei que tem algo cozido, muito simples, que mexe comigo e que eu tenho saudades.
Quando disse aos seus pais que queria ser cozinheiro, lembra-se da reação deles?
Não me lembro muito bem. Acho que fosse qual fosse (a profissão), estava tudo bem. Lembro-me sim da ideia de ir estudar para fora. Um miúdo com 17 anos ir estudar para Coimbra sozinho… lá me ia portando mais ou menos, mas não era o rapaz mais bem comportado (risos).
Porquê?
Acho que era mais extrovertido do que sou hoje. Ir estudar para Coimbra era um desafio e os meus pais ficaram um pouco preocupados.
Mas deu dores de cabeça aos seus pais?
[Pausa] Dei (risos). No início, quando era miúdo acho que dei algumas dores de cabeça. Depois comecei a ganhar juízo.
Quando é que pensou “agora quero ser cozinheiro”?
Foi mais ou menos quando fiz o meu primeiro estágio. Tive uma primeira experiência, foi engraçado mas não considerei nada de extraordinário. Depois de fazer o meu primeiro ano de escola, tive a oportunidade de ir estagiar, pela primeira vez, para um hotel. Embora fosse algo desorganizado e completamente oposto ao que eu faço hoje, senti que era interessante. Quando aprendia uma coisa, isso “abria-me” a porta para mais dez ou vinte. E assim sucessivamente. Quanto mais “puxava” mais informação chegava.
Ainda sente isso hoje?
Agora é mais difícil. Na altura chegava tudo muito rápido, havia muita informação. E eu também tinha poucos conhecimentos.
Um chef de cozinha precisa de ler muito?
Hoje em dia já não, mas eu tenho muitos livros de cozinha da época em que viajava. Fazia parte do investimento mas com a evolução da internet, infelizmente, já não se investe tanto nisso.
E um “Dicionário de Sabores” tem na sua cabeça?
Tenho o meu. Por acaso nunca tinha pensado nessa expressão. Há determinadas coisas que são cliché, autênticos clássicos. É importante para um cozinheiro que leia Maria de Lurdes Modesto ou um livro dedicado à cozinha molecular, para que possa ter a experiência dos dois, por forma a enriquecer o conhecimento. A profissão de cozinheiro é feita com prática e experiência. Passamos muitas horas a praticar. Às vezes sai mal.
Já existiu algum ingrediente que não conseguiu fazer?
Acontece muitas vezes. Agora, por exemplo, estamos em fase de experimentação de pratos novos para o The Yeatman. Alguns estão claros na minha cabeça mas depois, por algum motivo, não conseguimos colocar em prática. Muitas vezes, não temos tempo para dar sequência à ideia e, nesse caso, tentamos no mês seguinte ou no próximo ano.
Sente que a sua cozinha mudou com o passar do tempo?
A cozinha não mudou assim tanto. A maneira como vemos a cozinha é que é completamente diferente. Neste momento, trabalhamo-la de forma mais inteligente, ou seja, estamos mais à procura das experiências e seguimos as tendências do momento.
O que distingue a sua cozinha da de outros chefes?
Cada um tem a sua história. Levo as minhas raízes aveirenses para os meus menus. É completamente diferente cozinhar no Porto ou no Algarve. Apesar do país ser pequeno, os ingredientes são diferentes, os clientes também.
E onde busca inspiração?
Pode surgir do nada, há dias em que surge mais rápido e às vezes é preciso ter um bloco de notas para apontar as ideias. Outras vezes esforçamo-nos e não sai nada. É relativo. Tem muito a ver com a minha paz de espírito. Se calhar, no início da semana não consigo criar porque tenho muito trabalho pela frente, mas à sexta ou ao sábado, como tenho a vida mais organizada, encontro uma alegria interior que me leva a pensar em coisas diferentes.
Traz consigo sempre um bloco de notas?
Às vezes sim. Já usei, deixei e agora voltei a usar.
E viajar, ajuda?
É muito importante conhecer pessoas, países, aromas, especiarias, produtos, tudo o que as viagens nos trazem. Mas não nos podemos esquecer que estamos em Portugal, e para o meu tipo de cliente tenho de cozinhar o que é português. Seria a mesma coisa do que ir ao Japão e comer foie gras. Procuro ter uma cozinha moderna mas com as raízes portuguesas. É esse o meu foco.
O Lujbomir disse uma vez numa entrevista que levou a sua equipa para uma praia deserta no Alentejo. A cada um deu uma faca e um garrafão de água de cinco litros. Estiveram lá 24 horas e o desafio era tentarem cozinhar com aquilo que apanhavam. Alguma vez teve este tipo de experiência para a criação de um novo menu?
Não sei dessa história mas conhecendo bem o Lujbomir é perfeitamente normal (risos). Às vezes é importante partilharmos bons momentos com a equipa. Antes de começarmos esta nova temporada no hotel vamos ao Vidal dos Leitões comer leitão, iscas de fígado, beber espumante, ovos-moles. Vale tudo!
As experiências para novos menus, faço diariamente com a subchefe. Por exemplo, estamos a desenvolver agora um chouriço de peixe e a ela – que é transmontana, de Chaves e que está comigo há 14 anos – deleguei-lhe essa tarefa. Se sair sai, se não sair arrumamos a ideia e voltamos à carga no próximo ano. Há um núcleo mais pequeno, de pessoas com mais experiência, que nos ajudam nessa parte criativa.
“Poderia abrir o meu próprio restaurante em Aveiro mas teria de ter um conceito diferente.”
A subchefe é o seu braço direito?
E o esquerdo também (risos).
Como é que se conheceram?
Conheci a Carla quando cheguei de Londres e fui trabalhar para o restaurante Vidago Palace. Era uma miúda com 18 anos, tinha potencial. Entretanto o Vidago fechou para obras e eu resolvi ir para a Casa da Calçada, em Amarante. Como estava a preparar uma nova equipa trouxe-a comigo.
A cozinha é uma expressão artística?
Sim, claro que sim. Há um forte lado artístico na forma como apresentamos um prato, nas cores usadas, mas também a explosão de sabores que nos faz viajar.
Guarda memória de alguma reação que o impressionou quando provaram algo feito por si?
Pois não sei… já vi gente a chorar, outros a rir.
A chorar?
Sim, as pessoas às vezes emocionam-se no final.
E como é que se sente quando alguém se emociona por algo que criou?
Faz parte do meu trabalho. Tive pessoas em fim de vida que quiseram, propositadamente, ir ao The Yeatman para ter uma experiência. Isso marcou-me bastante. Cozinhamos tanto para os milionários, que podem fazer isso todos os dias, como para pessoas que andam o ano inteiro a juntar dinheiro para nos visitar.
Uma vez o José Avillez referiu numa entrevista uma frase do Oscar Wilde que considero interessante: “Há três maneiras de fazer a diferença numa sociedade: chocar a sociedade, entreter a sociedade ou alimentar a sociedade”. Hoje em dia um cozinheiro é estas três coisas?
Sim, acho que sim. Muita gente consegue chocar com o trabalho que faz. Alimentamos porque acaba por ser uma refeição e no que diz respeito ao entretenimento, penso que o futuro passa por aí, por mais experiências sensoriais.
Como acha que será a cozinha em 2050?
Em salas pequenas sermos reportados, através de um ambiente controlado, para diferentes locais. Por exemplo, sentirmos que estamos no Alasca ou no Brasil de acordo com determinadas aromas, texturas e sabores.
A cozinha é um ambiente pesado?
Já foi. As pessoas tinham menos formação, quem ia para a cozinha começava por lavar tachos, estou a falar há 40 ou 50 anos. Depois disso, passava para a preparação de saladas, seguiam-se as entradas e para chegar a chefe eram necessários uns trinta anos, e se calhar, muitos deles nem alcançavam esse patamar. Existia uma hierarquia muito forte e bem definida. Os cozinheiros eram vencidos pelo cansaço e, às vezes, humilhados por isso. Hoje em dia há uma educação e uma oferta completamente diferente e nem as pessoas aguentam. Eu venho do ambiente mais pesado, de trabalhar 16 horas por dia e nos últimos anos sinto que as coisas têm mudado e nós precisamos das equipas. Criamos pressão, disciplina e foco, mas ao mesmo tempo mantemos a educação. No entanto, também houve muita coisa que mudou. Antigamente tínhamos o “à la carte”, os menus, servíamos almoços e jantares, tudo isso criava muita pressão. O nosso cansaço, físico e psicológico, era tão grande que não conseguíamos filtrar essa parte. No The Yeatman criámos um restaurante à medida do que eu gostava que fosse: só um menu, um serviço, apenas servimos jantares, a equipa é fixa, tudo isto com os melhores produtos e uma cozinha espetacular. Era o meu sonho. Quando comecei, o meu objetivo era ter o que tenho hoje. Isto faz com que os cozinheiros durmam, que possam fazer exercício de manhã, que cuidem da sua alimentação. É muito diferente do cozinheiro de há 20 ou 30 anos atrás, que fumavam ou tinha problemas com drogas. Ainda há pouco tempo alguém falava disso. Eles tinham de encontrar um escape para toda a pressão que sentiam. Hoje em dia, já não existe essa agressividade e há um controlo maior das chefias. E nos últimos dez anos, o país também desenvolveu bastante ao nível da alta gastronomia.
Tem vícios?
Fazia muitas pausas, de hora a hora, para tomar café. Nem era pelo café, era pela pausa em si. Mas agora tomo menos, por opção.
Estamos no Museu Marítimo de Ílhavo, com o aquário dos bacalhaus como cenário. Dou-lhe o bacalhau fresco como ingrediente. O que fazia com ele?
Fazia um dos meus pratos preferidos, que aqui na região chamam as línguas de bacalhau e que os espanhóis chamam cocottes de bacalhau. É a mesma coisa, a diferença é que fresco tem mais colagénio. Tanto dá para fazer frito, passar farinha e ovos e fritar – uma experiência incrível – como dá para fazer como os bascos, com um bocadinho de cebola, azeite, as cocottes lá dentro, um pouco de tempero e depois vai-se mexendo como se fosse quase aquelas panelas das pipocas. Devagarinho e em lume brando começa a libertar toda a gelatina. Fica algo completamente cremoso e quando já está cozinhado leva um pouco de limão e coentros. E temos um dos meus pratos preferidos. Ficavam era sem bacalhaus (no aquário) porque é um por prato (risos).
Tem filhos?
Dois. Tenho uma filha com 14 anos e um com cinco anos.
Eles são críticos em relação aos seus cozinhados?
Mais ou menos. Quando cozinho para eles são coisas simples, nada de muito sofisticado e, normalmente, está tudo bem. O meu filho é mais expressivo, diz algumas vezes, “ah papá, isto está muito bom”. A minha filha já é mais crítica. Mas em casa não costumo ter muitos problemas, só às vezes quando estou a cozinhar nas férias, eles queixam-se que estou muito tempo na cozinha (risos).
Mas lembro-me de há uns anos ter tido uma crítica da minha filha que me deixou a pensar. Era um domingo, eu tive de ir fazer um serviço e tínhamos uma mesa onde ela e a minha mulher jantaram no restaurante. No final, perguntei se estava tudo bem e ela disse à mãe “como é que é possível, o papá faz carnes tão boas em casa e aqui serviu isto”. E as carnes estavam espetacularmente bem cozinhadas, mas ela não gostou e a partir daí fomos à procura de uma linha diferente.
É incrível como eles desde pequenos têm acesso a sabores tão diversos…
É quase como no início o que eu falei sobre a minha mãe. Posso não ter muito para dar, mas pelo menos a educação, tanto de sabores como de cultura, acho que a minha filha já tem e o meu filho terá um dia.
Alguma vez pensou em ter o seu próprio restaurante?
Já pensei mais, já pensei menos. É uma pergunta um pouco complicada. Enquanto não tiver o meu restaurante e trabalhar nas condições que trabalho tenho tempo para desenvolver a minha parte criativa, que me leva a ter disponibilidade para fazer outras coisas. A partir do momento em que tenha o meu restaurante, nunca conseguirei ter um restaurante com este nível. Infelizmente Portugal não nos dá essa capacidade. Por exemplo, com os nossos vizinhos espanhóis há determinados casos em que as próprias autarquias ajudam os chefes. Porque sabem que eles promovem a região. E, por isso, ter o meu próprio restaurante é sempre uma incógnita. Poderia abrir o meu próprio restaurante em Aveiro mas teria de ter um conceito diferente. Teria de estar a abdicar desta parte da minha carreira. Se seria mais feliz, não sei.
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