Manuel António Assunção termina o seu segundo e último mandato à frente da Universidade de Aveiro em 2018, mas revela que ainda são muitos os desafios que tem pela frente, numa instituição que nasceu com a preocupação de ser diferente.
O prestígio da UA é visível em vários rankings internacionais, onde surge entre as melhores do mundo. Como se alcançam estes resultados, apesar dos cortes no financiamento sentidos nos últimos anos?
Em primeiro lugar quero dizer que não se induz ou reduz qualidade instantaneamente. Existe sempre um passado, processos a decorrer, dinâmicas instaladas. Há uma atividade que vem de trás, que é presente e que se prolonga no futuro. Portanto, não é esperado um efeito imediato, mas podemos sempre interrogar-nos: se estes cortes não tivessem existido, será que poderíamos ter feito melhor? Certamente poderíamos ter feito melhor! Contudo, eu gostava de me centrar numa outra razão, que tem mais a ver connosco, com a UA, que são as fontes alternativas de financiamento. O Orçamento do Estado hoje representa menos de 50% do orçamento da Universidade e, nessa medida, vem sendo possível mobilizar outras fontes de financiamento que têm permitido promover atividade e, por conseguinte, garantir competitividade. Para além do referente a propinas, menciono os projetos de investigação, nacionais e internacionais, o financiamento para infraestruturas, o investimento em equipamento científico, de montantes que advêm diretamente da contratação com empresas, municípios e outras entidades. Este é um dinheiro competitivo, que temos conseguido atrair. Uma razão determinante neste trajeto que todos consideramos positivo.
Quais são as principais empresas com as quais a Universidade colabora?
São, em geral, as maiores empresas que têm uma melhor perceção de como é vital permanecerem na fronteira do conhecimento e, nesse sentido, colaborarem intimamente com a Universidade. O recente projeto de investigação, desenvolvimento e inovação, que estabelecemos em comum com a Bosch; a Nokia, que é nossa parceira no Instituto de Telecomunicações – IT e numa cátedra convidada, e que está alojada no próprio campus; a ex PT Inovação, atual Altice Labs, também membro do IT, cuja relação nos valeu o prémio COTEC; a Navigator, através da nossa integração no seu centro de I&D – RAIZ e com a qual estamos a desenvolver também um projeto de grande dimensão; e a OLI, nosso parceiro na InovaDomus, em múltiplas iniciativas. Estas são algumas, porém podemos referir muitas outras com as quais estabelecemos ligações. A relação entre a UA e as empresas é diversificada – só o nosso programa de estágios coloca mais de 1500 alunos por ano em ambiente empresarial. E muito do que de bom acontece decorre também de uma relação intensa com muitas indústrias de dimensão mais pequena, com maior ou menor desenvolvimento tecnológico.
Hoje vive-se na UA um ambiente internacional. Consegue enumerar as diferentes vantagens para a identidade da instituição?
A ciência e o conhecimento são internacionais. As universidades, pela sua própria natureza, são entidades internacionais e, por esse motivo, têm de estar em rede. Estar isolado é, no limite, não ser universidade. Eu diria até que existe uma relação muito estreita entre a qualidade de uma instituição e o seu grau de internacionalização: as melhores instituições são as mais internacionais. Se queremos construir melhores projetos e atrair financiamento, que nos ajude à sustentabilidade e à competitividade a que me referia, é necessário estarmos em rede. Ao mesmo tempo, a atração de alunos estrangeiros – para além do aspeto do reforço das nossas fontes de financiamento -, significa uma enorme vantagem para os nossos alunos, porque cria um ambiente internacional. Hoje, cada vez mais, para além das competências estritamente ligadas à carreira, sabemos que competências como a adaptação a ambientes multiculturais ou o domínio de outras línguas, são determinantes no sucesso profissional. Ter um campus com alunos com cerca de 80 nacionalidades é uma enorme vantagem para a formação dos nossos próprios estudantes.
Considera que a região está a aproveitar os quadros qualificados?
Acho que sim, mas mais uma vez poderia aproveitar melhor. Aqui, como em outras matérias, são precisos “dois para dançar o tango”. Ter quadros mais qualificados ajuda a fomentar uma melhor economia e uma melhor sociedade em geral, contudo não irá instantaneamente mudar a economia e a sociedade. Alguns estudantes quando terminam os seus cursos não conseguem fixar-se em Aveiro porque não há economia nem dinâmicas sociais para os absorver. No entanto, Aveiro fixa mais pessoas do que perde e por isso o balanço é positivo. A formação de quadros qualificados pela UA acaba por ter um contributo líquido muito importante para o desenvolvimento da região.
E a incubadora?
A incubadora tem crescido exponencialmente, neste momento é responsável por cerca de 150 empregos diretos e mais de sete milhões de euros de faturação anual. Já é em si mesma uma empresa razoável. Originou muitas start-ups. Está a fazer o seu caminho, com um crescimento muito acentuado. Para além disso, recentemente esteve na origem de uma incubadora em rede com a Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro (CIRA), a IERA – Incubadora de Empresas da Região de Aveiro. Com isto conseguimos duas coisas: primeiro, com a nossa competência na gestão do processo de incubação, podemos ajudar quem está a dar os primeiros passos; e segundo, podemos criar uma abordagem integrada, e, ao invés de andarmos a competir uns com os outros, estamos a colaborar uns com os outros e a complementarmo-nos.
Recentemente Manuel Delgado, secretário de Estado da Saúde perspectivou que seja criado o curso de Medicina na UA em 2017/2018. Podemos ou não esperar a sua criação?
Essas declarações decorreram num quadro muito concreto, no âmbito da assinatura de um memorando de entendimento entre várias instituições locais e nacionais, entre as quais a Universidade Nova de Lisboa e a Administração Regional de Saúde do Centro. Estamos empenhados nesse processo, que temos vindo a chamar “Mais Conhecimento, Melhor Saúde em Aveiro”. Todos sabemos que, a nível nacional, Aveiro tem hoje bons indicadores económicos e sociais: o setor exportador é o terceiro, depois de Lisboa e do Porto e a contribuição para o PIB é uma das maiores. Contudo, tem uma prestação de cuidados de saúde que, no contexto nacional, está bastante abaixo da realidade verificada noutras áreas. Portanto, é natural que estejamos empenhados em mudar esta realidade. Desde já, ao trabalhar articuladamente com o hospital, ao perceber que a sua expansão é fundamental por forma a modernizar-se na relação com a produção do conhecimento e com a investigação pré-clínica e clínica. Estamos a trabalhar nisso juntamente com a Câmara Municipal de Aveiro, e outros parceiros, para além do hospital. Naturalmente que a formação médica é um fator de promoção destas externalidades para o sistema de saúde no seu todo, para a melhor prestação de cuidados e para a sua dinamização. Foi nesse sentido que foi falada a criação do curso de Medicina na Universidade de Aveiro. Com certeza que não será para 2017/2018, mas encaramos essa possibilidade num futuro próximo. Será sempre uma iniciativa em estreita parceria com a Universidade Nova de Lisboa, atenta e alinhada com as preocupações da formação de médicos no seu todo. A nossa pretensão não é aumentar os números de vagas em medicina, o que queremos é ajudar a formar melhores médicos e, acima de tudo, que o processo de o fazermos se constitua como um elemento dinamizador na prestação de cuidados de saúde da região. Isto é um processo que eu diria imparável. É óbvio que Aveiro merece melhor prestação de cuidados de saúde e vai ter de os ter.
E nesse sentido a investigação tem um papel fundamental?
Vale a pena sublinhar que hoje se faz muita investigação em saúde na UA. Nos tempos modernos, a saúde é, cada vez mais, uma ponte entre a medicina, no seu sentido tradicional, e os novos conhecimentos, outras disciplinas, as novas tecnologias e os novos contributos que daí advêm. Existe um conjunto de valências determinantes para uma boa prestação dos cuidados de saúde, e na Universidade de Aveiro temos – devido à nossa interdisciplinaridade e força, em particular, nas áreas da engenharia – muitas pessoas a trabalharem em áreas com importância para a saúde. Seria pouco responsável por parte da UA não se preocupar em transferir o conhecimento que hoje produz, em áreas que se pressupõe que possam ser integradas na valência da saúde, a favor da qualificação dos sistemas de saúde, desde logo a nível regional. Ou seja, nós também colocámos a saúde como uma área prioritária (integrou o programa de ação do meu segundo mandato), porque – como eu repito muitas vezes – o domínio da saúde é hoje o mais transversal à Universidade de Aveiro, dado que praticamente todas as unidades de investigação trabalham, de um modo ou de outro, nele.
No ano em que tomou posse como reitor, disse em entrevista que considera um grande desafio fazer de “Bolonha o que Bolonha deve ser”. Passados estes anos, acha que estudantes e professores estão mais comprometidos com o conceito de autonomia que Bolonha promove?
Considero que as pessoas viram Bolonha de uma maneira muito mecânica. Bolonha não é reduzir a duração dos cursos, isso é apenas a sua arquitetura. Bolonha é passar de uma lógica de transmissão de conhecimento para uma lógica de apropriação de competências e, para isso, principalmente centrar a aquisição dessas competências no papel do aluno. Isto implica autonomizar o estudo de quem aprende. É fundamental que cada estudante possa ser, o mais cedo possível, mais autónomo e responsável no seu processo de aprendizagem, para que no futuro possa ter mais sucesso na vida e na profissão, e dar um melhor contributo à sociedade. Fizemos algum caminho, no entanto trata-se, acima de tudo, de uma questão cultural. É algo que precisa de consciência e de novas atitudes e abordagens no processo de aprendizagem por parte dos professores, mas também de disponibilidade, exigência, responsabilização e vontade por parte dos alunos.
Que desafios considera que o seu sucessor encontrará?
Eu diria que consigo antecipar alguns porque são aqueles que eu próprio estou a enfrentar. Globalmente tivemos um investimento significativo em equipamento científico. No mundo competitivo em que vivemos, o equipamento científico torna-se rapidamente obsoleto, e hoje a possibilidade de construir conhecimento novo depende, em grande parte, do que dispomos em termos de equipamento. Instalámos um novo modelo de governo e gestão, porque entrou em vigor um novo Regime Jurídico de Instituições de Ensino Superior e porque passámos a Fundação; e coube-me implementar esse processo. Além disso, era imperioso assegurar a sustentabilidade da Universidade no período de ajustamento que vivemos e que correspondeu à vinda da Troika. Há vários desafios que se mantêm: por exemplo conseguir o equilíbrio entre prioridades e abrangência. Ou seja, somos uma Universidade com muitas áreas, mas não podemos querer ser uma referência em todas. Isto é uma questão que eu diria permanente. Associada a ela, existe outra sobre a qual nos devemos questionar: que características queremos ter que permitam distinguir a Universidade de Aveiro de outras? A UA nasceu com esta preocupação de ser diferente. Criámos cursos que não existiam. Hoje, precisamos de fazer bem, contudo precisamos também de continuar a ter marcas identitárias, de sermos referência muito forte nalguns setores. Uma segunda questão prioritária é a de contribuir mais para respostas adequadas aos grandes desafios da sociedade. Esta é uma grande questão que necessita de uma abordagem multidisciplinar. A relação com a região é um exemplo da nossa preocupação e do nosso bem-fazer, traduzido por exemplo no desenho do Plano Estratégico ou na instalação do Parque de Ciência e Inovação. Temos de fazer uma valorização social do conhecimento, de mostrar à sociedade que somos úteis – sem perder de vista a nossa missão no seu todo – para que a sociedade, reconhecendo isso, perceba que é preciso investir nas universidades, porque elas nos ajudam a ser melhores e mais capazes do ponto de vista económico, social e cultural. O terceiro desafio permanente é o da competitividade e atratividade. Temos de aumentar a competitividade da Universidade de Aveiro, no panorama das Instituições de Ensino Superior em Portugal e na Europa; e a sua atratividade para alunos de licenciatura ou pós-graduação, mas, igualmente, para investigadores e indústria. Por fim, o quarto desafio, que está subjacente a tudo isto e lhe dá coerência – aos investimentos nos equipamentos, ao modelo de governo instalado, às lógicas de sustentabilidade e à forma como vamos aumentar a competitividade – é o reforço dos recursos humanos. Um assunto que tem a ver com o rejuvenescimento necessário, com a atração de recursos humanos que possam fazer a diferença, com o trazer valências em áreas que consideramos estratégicas; mas, em paralelo, com a necessidade de olhar para as pessoas que cá estão, para quem nos permitiu chegar aqui, promovendo o reconhecimento do seu mérito. Algo que já estamos a fazer e que importa aprofundar.
O futuro também é encarado como um desafio?
O que hoje nos permite estar nos rankings não é necessariamente aquilo que nos permitirá estar amanhã. Hoje temos de fazer bem, mas temos também de conseguir antecipar o que é necessário fazer amanhã. Este equilíbrio entre assegurar a velocidade de cruzeiro, que é fundamental, e a antecipação do futuro – ser de capaz de pensar “fora da caixa” ou de uma maneira disruptiva – é um desafio que sempre me fascinou, porque é neste “jogo” que se “joga” a competitividade do futuro da universidade. Outra questão determinante para o futuro é, obviamente, a de promover uma melhor cultura organizacional. O que está relacionado, desde logo, com um aspeto primordial: perceber que quando privilegiamos o projeto em detrimento de agendas pessoais, ganhamos todos. Isto é fácil de dizer, difícil de implementar. Talvez mais específico, e igualmente fundamental, é o desafio de pensar e agir mais interdisciplinarmente. Neste ponto há ainda muito a fazer, embora a UA esteja particularmente bem colocada – porque tem uma estrutura organizacional sem faculdades, onde há uma boa relação entre departamentos e escolas, com muitas unidades de investigação já pluridisciplinares; e porque o ambiente informal que se vive no campus e na relação com o exterior também ajuda. As respostas aos grandes desafios que a sociedade nos coloca são, cada vez mais, interdisciplinares. A indústria 4.0, de que tanto se fala agora, um exemplo entre muitos outros possíveis, requer uma especialização multidisciplinar; ou seja, a empresa será necessariamente especialista em algo, porém, nos dias de hoje, para o fazer, terá que ter uma competência multidisciplinar integrada.
Passados sete anos, recorda-se do que o fez abraçar este projeto? O que sente agora ao olhar para trás?
Eu fui presidente do conselho pedagógico três anos e vice-reitor durante quinze, ou seja, quando ocorreram eleições para reitor eu estava ligado à gestão e às políticas de ensino superior há cerca de vinte anos. Nessa altura, mais do que um professor investigador eu considerava-me um profissional da gestão do ensino superior. O que tornou natural o que veio a seguir. Relativamente à questão “o que sente agora ao olhar para trás”, eu respondo: ainda estou a olhar para a frente (risos). Quando olho para trás, se quer que lhe diga, sinto um pouco de saudades de dar aulas. Aquilo que eu mais gostei de ouvir, que me deu mais gozo, foi uma vez um casal de antigos alunos, que encontrei numa sessão musical, me ter dito: “Ah reitor…que pena. Gostávamos tanto das suas aulas”.
Fonte da Foto: Edição nº55 Março 2017
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