A mítica lancha da “Praia da Costa Nova”, a navegar desde 1945, voltou à ria de Aveiro após 17 anos de inatividade tornando-se num museu flutuante que transporta a história das nossas gentes.
A bordo da única lancha de carreira que ainda navega na ria e que durante 51 anos assegurou a ligação fluvial a São Jacinto, somos tentados a imaginar o que viam os trabalhadores dos estaleiros, os militares da base aérea e os habitantes que faziam a travessia. As antigas marinhas de sal, os palheiros cravejados a azulejos, que outrora serviam para guardar as alfaias e onde os marnotos se abrigavam do mau tempo, a entrada pelo Esteiro do Gramato, pequenos canais que davam serventia e acesso às salinas são hoje recordados no início da viagem na mítica lancha que tem como ponto de partida o Canal das Pirâmides, junto ao Jardim do Rossio. Datada de 1945, a lancha “Praia da Costa Nova” foi construída pela ETRA – Empresa de Transportes da Ria de Aveiro e assumia à época uma forte importância social, “cerca de duas mil pessoas cruzavam diariamente as margens da ria nesta e noutras embarcações idênticas”, como explica Gustavo Barros. Cagaréu de gema viu o seu sonho ser materializado ao fazer renascer a lancha que deixou de navegar em 1996. Em 2010, o então jovem empresário conseguiu adquirir a embarcação, que se encontrava ao abandono e tinha o abate como destino traçado. Passados três anos, a lancha regressou às águas da ria após uma reparação e restauro – apenas possíveis devido à sociedade constituída na altura com a empresa Quebra Tempo – que lhe trouxe reconhecimento internacional. “Esta embarcação é um museu a navegar porque em 2015 conseguimos a certificação da Academia Europeia de Museus e da Fundação Louisi Michaeleti, que premeia todos os projetos que tiveram uma componente industrial e que juntando a componente da inovação e recuperação, ganham uma nova vida sem serem descaracterizados”.
A tarde está no começo e para trás deixamos a marina e a antiga lota para entrarmos na Cale da Veia, o encontro entre a água doce do Rio Vouga e a água salgada do Atlântico. Navegamos pela boca da barra em direção ao esteiro do Gramato e vamos “desaguar” à foz do Rio Vouga, uma das zonas mais largas da ria de Aveiro, com cerca de 16 quilómetros, e um dos pontos onde se pode observar a Reserva Natural das Dunas de São Jacinto. Pelo caminho, contemplamos o horizonte, a fauna e a flora envolvente, num dia perfeito para aproveitar o sol e relaxar.
Na mão Gustavo Barros segura um mapa antigo e explica-nos que cada quadrado desenhado corresponde a uma marinha de sal identificada com um número e um nome. À epoca “precisávamos de muitas marinhas de sal porque tínhamos a maior frota de navios da pesca do bacalhau do mundo. Esses navios, dependendo da dimensão, precisavam entre 600 a 800 toneladas de sal para conservar o bacalhau na viagem de regresso a Portugal”. É ao lado dos poucos bacalhoeiros que restam da frota portuguesa e dos estaleiros da construção naval que a nossa rota passa. Imaginamos as histórias e as aventuras que aqueles navios contam e temos a oportunidade de ouvir algumas delas por um dos homens que por lá andou. Ao comando da embarcação, na parte de cima da lancha a que chamam tombadilho, o mestre Manuel Alberto Costa relembra-nos alguns episódios dos tempos da faina maior, onde esteve quase 20 anos, entre 1965 e 1984. Em 2013, aceitou o convite de Gustavo Barros para estar ao comando da “Praia da Costa Nova” e diz sentir-se útil, “além de ser uma distração para não estar em casa”.
A meio da viagem, que dura cerca de duas horas e que tem um custo de 20 euros, avistamos o Farol da Barra, o largo de São Jacinto – onde se observa a antiga Base Aérea e as ruínas do estaleiro – o Jardim Oudinot com o Navio Museu Santo André atracado. Estamos quase a terminar. Tempo para recordar algumas das histórias que Gustavo guarda das memórias de criança. “Lembro-me de andar nesta lancha em pequeno, quando ainda existia a tradição das famílias de Aveiro irem almoçar a São Jacinto e quando passávamos férias na Costa Nova”. Originalmente atracada no Cais do Alboi esta é uma lancha histórica que também guarda enredos de outros tempos e de outras gentes e que Gustavo pôde revive-los em parte. “Lembro-me da Rosa Peixeira de São Jacinto que vinha a Aveiro todos os dias na carreira das 17h45 para comprar o peixe que vendia na Costa Nova. Quando soube que tinha sido eu a recuperar a lancha, agarrou-se a mim e começou a chorar dizendo ‘ai meu menino, foi aqui que conheci o amor da minha vida e foi aqui que o perdi’. A Rosa conheceu o seu marido a bordo da lancha (ele era funcionário dos estaleiros) e, em parte, as suas vidas foram passadas nesta e em outras embarcações”. No futuro, Gustavo tem o sonho de conseguir, com o apoio das entidades e das pessoas envolvidas no projeto, recuperar a lancha “Costa da Luz”, a prima da “Costa Nova” como lhe chama. A paixão e a entrega será a mesma: “isto foi um projeto de vida. Graças ao apoio da minha equipa, estamos aqui mais por paixão do que pelo negócio”.
Fonte das Fotos: Miguel Bastos – Litoral Magazine
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